25/06/2009

Fiscais da Natureza

por Karla Monteiro*

Unidos pela mesma causa, índios e seringueiros criam uma das mais bem-sucedidas experiências em prol da preservação da Amazônia, a universidade da floresta Yorenka Ãtame

Capa da Revista O Globo com Moisés Piyãko Foto: Marizilda Cruppe

Nessa história, empresários cariocas, caboclos e índios encontram-se sob a mesma árvore. A causa é comum: a velha luta da preservação da Amazônia. João Augusto Fortes, herdeiro da João Fortes Engenharia, sujeito com longos anos de militância na causa, capitaneia o braço empresarial da eclética turma.

Em 2003, em parceria com o CDI (Comitê para Democratização da Informática) e com Ailton Krenak, companheiro de Chico Mendes na idealização da Aliança dos Povos da Floresta e uma liderança indígena de peso, ele criou a ONG Rede Povos da Floresta, com o apoio de companheiros como Luís Paulo Montenegro, do Ibope, João Alfredo Viegas, da Concremat, e Paulo Jobim. A idéia era continuar o trabalho adormecido com a morte, em 1988, do lendário seringueiro. João foi amigo de Chico e sempre botou fé no caminho traçado por ele e Krenak: estabelecer a paz entre índios e seringueiros e fortalecê-los culturalmente, para que juntos os habitantes da Amazônia pudessem defender sua causa.

João Fortes, um líder seringueiro e o ashaninka Benki Piyãko sob a samaúma centenária Foto: Marizilda Cruppe

O início da ONG de João foi modesto. O projeto consistia na instalação de pontos de internet em aldeias e comunidades remotas para facilitar a comunicação. De lá para cá, a Rede Povos da Floresta diversificou a atuação. O braço indígena mais forte dessa rede hoje são os Ashaninka, etnia oriunda do Peru, que se espalhou pela selva depois da chegada dos espanhóis. No lado peruano da Amazônia, são cerca de 70 mil índios Ashaninka. Aqui, em torno de 1.500. Sábios conhecedores da floresta, eles são donos de uma biografia impressionante, que mistura tradição, militância, organização e um projeto traçado dentro da própria aldeia que casou perfeitamente com os ideais herdados por João de Chico Mendes e Krenak, de juntar todo mundo debaixo da mesma árvore em prol da Amazônia.

Hoje, sob uma centenária samaúma, a rainha do centro educacional Yorenka Ãtame, o coração da conexão Rio-Amazônia, a prosa rende esperança. No pedaço de terra localizado a oeste do Acre, no Vale do Juruá, próximo à fronteira com o Peru, nasceu dessa teia intrigante de relações uma espécie de universidade da floresta.

- A base do pensamento é reforçar cultura. Nosso trabalho segue alguns fundamentos: ele é tradicional, ele é de valorização de cultura, ele é de valorização dos saberes da floresta. A princípio, quem ensina aqui como fazer para preservar é a própria floresta - diz João.

O dia na Yorenka é longo e o debate é intenso e apaixonado Foto: Marizilda Cruppe

A Yorenka Ãtame ocupa 86 hectares de terra, às margens do rio Juruá. O povoado mais próximo é Marechal Thaumaturgo, um vilarejo de dez mil habitantes, onde só se chega de barco ao avião fretado. O lugar é um centro de troca de conhecimentos entre índios das mais diversas etnias e brancos, com duas salas de aula, uma biblioteca, uma lojinha de artesanato, uma sala de internet, um refeitório, duas casas indígenas e uma pousada para abrigar 40 pessoas, tudo construído de acordo coma arquitetura Ashaninka. Um espaço assim era o sonho de Samuel Piyãko, líder espiritual e político dos Ashaninka do Rio Amônea, cuja aldeia fica a três horas de barco da Yorenka.

Para entender a origem de tudo, é preciso voltar aos anos 70. Naquela época, quando seringueiros ainda matavam índios - e vice-versa -, insuflados pelos chamados patrões, ele idealizou um território neutro, onde os moradores da floresta pudessem trocar experiências e se unir na preservação da Amazônia. Focado na conquista da união, o velho sábio casou seu filho, Antônio Piyãko, hoje cacique Ashaninka, com a seringueira Francisca Oliveira da Silva. Aos 19 anos, a cabocla destemida virou uma ativista quando o ativismo nem estava em moda, carregando na barra da saia sete filhos: Francisco, Moisés, Isaac, Benki, Bebito, Dora e Alexandrina.

- Ela tomou a frente. Introduziu valores comerciais aos produtos da aldeia, ensinou a língua dos brancos, apoiava meu pai na preservação da nossa cultura, apesar de nunca ter vestido roupa ou tentado virar índia - conta Francisco.

Antônio Piyãko posa com a mulher, a seringueira Francisca Oliveira Foto: Marizilda Cruppe

- A mãe foi muito ameaçada. Quando eu tinha 5 anos, um sujeito pulou na frente da nossa canoa com um facão para matá-la. Ela saltou no seco com uma vara na mão. Ele foi para cima dela. Não sei como cinco pessoas saíram de dentro da mata e nos ajudaram. Ela contrariou os interesses, conseguindo estabelecer diálogo entre caboclos e índios - lembra Benki.

Quando os filhos começaram a crescer, Francisca, ou dona Piti, ficou na retaguarda e botou seu exército na linha de frente. Francisco, o mais velho, hoje com 41 anos, tinha 12 anos. Nessa época, as primeiras discussões sobre a demarcação das terras indígenas estavam se espalhando pela selva. Era o menino quem ia às reuniões e depois traduzia para a tribo as decisões. Até então os ashaninka migravam de um rio para o outro, em busca de paz. Assim que as terras foram finalmente demarcadas, em 1992, os irmãos Piyãko resolveram se sentar e traçar um plano.

- Decidimos trabalhar para que daqui a cem anos os ashaninka continuem tendo suas terras, sua cultura, a mesma força, a mesma organização. Para isso, é preciso lutar pelo entorno. Se só os ashaninka tiverem mesa farta, continuaremos sempre em perigo - raciocina Francisco.

- O primeiro trabalho foi estabelecer a aldeia. Expulsamos os intrusos da nossa terra, cortamos a cachaça e os produtos industrializados. Iniciamos o reflorestamento e a recuperação de tracajás (espécie de tartaruga) e peixes. Resgatamos o artesanato e pesquisamos todos os recursos naturais. Depois desse planejamento todo, cada um dos meus irmãos assumiu um papel.

Nessa divisão de tarefas, Benki e Moisés viraram embaixadores dos ashaninka, enquanto Francisco e Isaac assumiram funções na política local. Francisco é hoje secretário para Assuntos Indígenas do governo do Acre e Isaac, secretário de Meio Ambiente da prefeitura de Marechal Thaumaturgo. Benki e Moisés passaram a viajar para encontros indígenas, dentro e fora do Brasil.

Centro Yorenka Ãtame, local escolhido para a Roda de Conversa Foto: Arquivo

Em 1993, eles conheceram João Fortes, em São Paulo. Desde a morte de Chico Mendes, João já havia feito várias investidas na Amazônia. A mais famosa delas foi o lançamento do couro vegetal, em parceria com a empresária Bia Saldanha, um produto produzido por índios e seringueiros, que chegou às vitrines da grife francesa Hermès. A saga do couro vegetal foi contada por Guilherme Fiúza, autor de "Meu nome não é Johnny", no livro "Amazônia 20° andar".

- Nos encontramos em São Paulo e, depois, no Colorado, na fundação Earth Restoration Corps. Ali nossos laços se estreitaram - conta João. - Quando surgiu a Rede Povos, a Ashaninka foi uma das agraciadas com acesso à internet.

Em 2005, os irmãos Benki e Moisés viajaram para a Europa para participar do Ano do Brasil na França com a turma de João. Na volta, todos voaram para o Acre, entre eles Luís Paulo Montenegro e a atriz Letícia Spiller.

- Vieram umas vinte pessoas para cá. Fizemos uma reunião na beira do rio. Expus a ideia do meu avô e o Luís Paulo se dispôs a conseguir os recursos para a construção da Yorenka Ãtame. A inauguração foi em 7 de julho de 2007 - conta Benki. - A proposta era criar uma universidade da floresta, onde poderíamos colocar nosso conhecimento, nossa ciência tradicional a serviço da Amazônia.

A universidade desenhada por Benki está funcionando a pleno vapor. Na semana passada, quando estivemos por lá, índios de nove etnias estavam reunidos na Yorenka Ãtame, vindos dos mais distantes pontos da selva. As rodas de conversa, como eles chamam as reuniões, duraram três dias, com intervalo só para os deliciosos almoços: feijão colhido no quintal, farinha, peixe e suco de carambola, de maracujá, de tangerina. O assunto da vez era a implantação de 30 pontos de cultura em terras indígenas. Os tais pontos de cultura contarão com instrumentos para o registro e divulgação das tradições de cada tribo, como câmeras de vídeo, câmeras fotográficas, computadores e acesso à internet.

Índios e brancos debateram exaustivamente como levar tecnologia para as aldeias sem botar em risco a cultura tradicional. Os ashaninka exibiram sua experiência no uso da parafernália inventada pelo homem branco. Eles fizeram um documentário premiado na França, "A gente luta, mas come fruta". E, em 2004, a tribo enfrentou uma invasão de madeireiros peruanos, vencida com tecnologia. Em vez de partir para a briga, Benki espalhou um email, que chegou ao Palácio do Planalto e ao "Fantástico". Foi Estevão Ciavatta, marido de Regina Casé, quem tratou de encaminhar a mensagem para a TV Globo. Em poucos dias, o Exército estava lá. E a televisão também.

- A internet é só um ponto de ligação, de comunicação entre eles e deles com o mundo. Nós somos um grupo de apoio urbano que dá o aval de que é legal, é bacana ser índio e preservar as tradições. Quando eles se veem reconhecidos, batalham pelo próprio valor, pelas raízes - comenta João.

Durante a roda de conversa, todo mundo falou, palpitou, sugeriu usos para os equipamentos que receberão. Os índios se vestiram e se pintaram para o encontro. Francisco Piyãko reforçou o uso guerreiro para os computadores e câmeras.

- Na época do Chico Mendes, a gente fazia os chamados empates para impedir as motosserras no corpo-a-corpo. Com os equipamentos, podemos fazer o empate sem sair de nossas aldeias. Podemos mandar um email, filmar, fazer documentários. A tecnologia fortalece nosso poder de organização - comenta Francisco.

A turma da Yorenka está entrando também no mercado da neutralização de carbono, com o projeto Nanapini. Segundo João Fortes, a idéia é conseguir uma forma de subsistência que junte num pacote só grana, preservação ambiental e ciência tradicional. A mesma história que ele contou lá atrás, com o couro vegetal.

A Cantão neutralizou seus desfiles do ano passado nas terras da aldeia, com cerca de 300 árvores Foto: Alice Fortes

Os ashaninka selecionaram um grupo de 150 espécies de viveiro. E experimentalmente já conquistaram três clientes: a banda inglesa The Police, que neutralizou a emissão de carbono gerada na turnê pelo Brasil, em 2007, na Yorenka, com a plantação de 400 árvores; a Cantão, que neutralizou seus desfiles do ano passado nas terras da aldeia, com cerca de 300 árvores; e o chefe de cozinha Claude Troisgros, que ganhou de presente árvores para neutralizar o carbono emitido na festa do seu casamento, em março deste ano.

- Dizemos que estamos vendendo ar. O projeto está na fase experimental. No próximo semestre, vamos entrar pesado no mercado - diz João.

- O Nanapini é uma proposta de restaurar a natureza. E ainda propõe uma nova forma de viver da floresta. A Yorenka é um laboratório que vai se replicar pela Amazônia - acredita Benki.

O dia na Yorenka é longo, e o debate é intenso e apaixonado. Quando anoitece, os espíritos da floresta pedem passagem. A noite de quarta, dia 10, chega estrelada. Debaixo da velha samaúma, brancos e índios se reúnem para tomar o chá sagrado, a ayahuasca, a mesma poção mágica usada no Santo Daime. Quem comanda o ritual, uma tradição indígena milenar, de conexão espiritual, é Benki, que também é um pajé, treinado na medicina tradicional do seu povo.

Quando Benki começa a servir o líquido de cor marrom, cheiro forte, gosto intragável, todos fazem fila. A viagem começa, guiada pela força dos cânticos em arawak, a língua dos ashaninka. Só posso falar por mim, porque ayahuasca é uma trip solitária: luzes psicodélicas iluminaram a mata. Mantra de índio tem poder.

- O kamarampi, que os brancos conhecem como ayahuasca, é o nosso alimento espiritual. A bebida possibilita a descoberta da força interna. É autoconhecimento, é terapia. Os ashaninka ofertavam o kamarampi aos incas em troca de conhecimentos. Trocar conhecimento e valorizar o coletivo sempre foi a nossa história - garante Francisco, futuro cacique ashaninka.

* Karla Monteiro, Revista O Globo, 21/06/2009. Karla Monteiro e Marizilda Cruppe viajaram a convite da ONG Rede Povos da Floresta

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