03/03/2008

Empresas madeireiras exercem o papel do Estado nas comunidades indígenas peruanas

Avaliação dos representantes do CTI presentes no I Encontro dos povos indígenas fronteiriços do Brasil-Peru, 03/03/2008.

Foto Helena Ladeira/CTI
















Povos Ashaninka do Brasil e do Peru realizaram entre os dias 25 a 27 de fevereiro na aldeia Sawawo, localizada no departamento de Ucayali (Peru), na fronteira com o estado do Acre, o I Encontro de Povos Indígenas Fronteiriços do Brasil-Peru.

O encontro foi organizado pela Apiwtxa – Associação Ashaninka do Rio Amônia, com o apoio da CPI/Acre - Comissão Pró-Índio do Acre, do CTI - Centro de Trabalho Indigenista e da RCA - Rede de Cooperação Alternativa. Estavam presentes organizações indígenas e indigenistas de ambos os países como a UCIFP – União das Comunidades Indígenas Fronteiriças do Peru, da ACONAMAC – Associação das Comunidades Asheninkas – Ashaninkas de Masisea e Calleria, da FENAMAD – Federação Nativa do Rio Madre de Deus e Afluentes, e da CIPIACI – Comitê Indígena Internacional para proteção dos povos isolados e em contato inicial da Amazônia, o Grande Chaco e a Região Oriental do Paraguai. Contou também com a participação do Governo Brasileiro, através da Coordenação Geral de Índios Isolados da FUNAI – Fundação Nacional do Índio e de representantes do Governo do Estado do Acre. Participaram ainda como ouvintes um técnico da FSC-Brasil – Conselho Brasileiro de Manejo Florestal, representante da empresa madeireira peruana Forestal Venao, do INRENA – Instituto Nacional de Recursos Naturais (órgão peruano equivalente ao IBAMA no Brasil), e do Ministério da Agricultura peruano.

O objetivo do encontro foi discutir o impasse criado pela exploração madeireira na fronteira entre os dois países, seus impactos socioambientais nas terras e comunidades indígenas e nos territórios dos índios isolados, como também discutir soluções de desenvolvimento não madeireiro.

Encaminhamentos do I Encontro de Povos Indígenas Fronteiriços do Brasil-Peru
Pontos acordados entre os dois países:
1º - Dar prosseguimento aos canais de diálogo e intercâmbio de experiências aos povos indígenas e outros povos da floresta do Brasil e Peru;
2º - Colaborar na identificação e implementação de estratégias de aproveitamento produtivo sustentável dos territórios indígenas fronteiriços de maneira a garantir fontes de subsistência e de comercialização;
3º - Acompanhar no processo de manejo florestal com intercâmbio de conhecimento em ambas as partes de fronteira;
4º - Realizar ações de controle de maneira conjunta sobre as invasões de Terra Indígenas fronteiriços;
5º - Promover intercâmbio de produtos entre as comunidades indígenas de fronteira;
6º - Que às comunidades indígenas assentadas nas zonas fronteiriças fiquem restritamente guardados o respeito territorial e o espaço de ambas as partes e o uso dos recursos naturais;
7º - Fica sobre a responsabilidade das normas comunitárias de ambas as partes o controle e a autorização respectiva para o trato com os transeuntes indígenas e não indígenas;
8º - Ambos os lados se comprometem em socializar informação e identificação de índios isolados para garantir seus direitos;
9º - Concordamos que as coordenações responsáveis pelas decisões e acordos tomados pelas comunidades indígenas e as delegações presentes neste I Encontro de Povos Indígenas Fronteiriço do Brasil-Peru seja a UCIFP – União das Comunidades Indígenas Fronteiriças do Peru, pelo lado peruano e a APIWTXA - Associação Ashaninka do Rio Amônia e a OPIRJ – Organização dos povos indígena do rio Juruá, pelo lado brasileiro;

O Encontro, que teve como proposta inicial discutir os impactos socioambientais nas terras e comunidades indígenas e nos territórios dos índios isolados, acabou assumindo outro enfoque ao longo das discussões, centrando-se mais especificamente na situação das aldeias Ashaninka do Peru, região do alto Juruá, que estão envolvidas em projetos de manejo florestal em parceria com empresas concessionárias dos lotes para a exploração de recursos madeireiros.

Durante o encontro ficou evidente a total ausência do Estado peruano, seja na prestação de serviços básicos de assistência da população, como saúde e educação, seja na área de segurança e garantia da integridade das comunidades. Na omissão do Estado, as empresas têm ocupado estes espaços, como resume Edwin Chota, liderança Ashaninka do Peru e representante da ACONAMAC: “precisamos que o governo assuma sua responsabilidade com os povos indígenas, e não que uma empresa venha para as nossas terras e assuma uma responsabilidade que é do governo. Educação, saúde, responsabilidade social é dever do governo, e não de uma empresa.”

Entre os temas abordados durante o encontro, teve destaque a questão dos contratos firmados entre as empresas concessionárias e as comunidades indígenas. Para se ter uma idéia, no caso da aldeia Sawawo e de mais 4 comunidades da região, à empresa Forestal Venao cabe 80% do lucro sobre as vendas de madeira já processada (com base em preços do mercado peruano, e não do mercado internacional, para onde segue toda a produção madeireira e onde este recurso alcança maior valor), enquanto as comunidades indígenas ficam com apenas 20% deste montante. Apesar de a empresa argumentar que arca sozinha com as despesas iniciais em benfeitorias e infra-estrutura básica para a produção (abertura de estradas para escoamento, capacitação de pessoal, maquinário), ficou evidente que o contrato é altamente lucrativo para a empresa.

A maior parte da mão-de-obra envolvida em todas as etapas do processo de extração de madeira (inclusive na abertura de estradas) é indígena. Além disso, as despesas com a atenção básica de saúde e educação e demais serviços que deveriam ser prestados pelo Estado peruano cabem à comunidade, saindo, portanto dos 20% das vendas totais de madeira. Ainda sim, verifica-se que a atenção de saúde e educação é precária – não há posto de saúde minimamente equipado, escolas com estrutura, formação e material adequado.

A atividade madeireira na região tem causado inúmeros conflitos, às vezes com mortes. De acordo com lideranças da comunidade Ashaninka Sawawo, há presença constante de madeireiros ilegais em áreas próximas à aldeia e a presença de autoridades policiais peruanas é inexistente. Quando há encontros entre índios Ashaninka e estes grupos de madeireiros, é comum haver conflito armado. Como conseqüência, algumas comunidades têm buscado estratégias próprias de proteção e o clima de tensão é constante em algumas aldeias.

Pouco se sabe a respeito da magnitude destes impactos sobre as populações de índios isolados na região, mas a julgar pela situação verificada nas aldeias Ashaninka no Peru e pelas informações que se tem da crescente migração de isolados que vivem em território peruano em direção às Terras Indígenas e para outras áreas protegidas do Acre, a projeção não parece ser muito otimista. Nenhuma autoridade do governo peruano presente no encontro sequer mencionou a existência de índios isolados na região e a disposição do Estado peruano em protegê-los dos impactos gerados pela atividade madeireira. Na ausência de um interlocutor que manifeste os interesses destas comunidades frente às autoridades governamentais, serão também as empresas que vão garantir os seus direitos? Ou, quem sabe, os madeireiros ilegais?

Estes e outros impactos parecem não estar sendo contabilizados nos planos de manejo elaborados pelas empresas madeireiras em seu “trato igualitário” com as comunidades, parafraseando a engenheira da empresa Forestal Venao, Juanita Rubina.