28/10/2007

Nosso mundo é complexo e funciona bem

Mundo ashaninka funciona sem burocracia

por Elson Martins*

O site da Biblioteca da Floresta Marina Silva continua em construção. Por isso não foram disponibilizadas na internet, ainda, as falas dos chefes Ashaninka do rio Amônia - Shãsha (Francisco) e Txeni (Moisés) - gravadas dia 18 como parte dos "diálogos da Florestania". Antecipo, entretanto, anotações que consegui fazer na ocasião. Vale a pena refletir sobre o que eles dizem:

foto Almanacre
Francisco (Shãsha) e Moisés (Txeni): “Nosso mundo é complexo e funciona bem”







FRANCISCO (Shãsha) ASHANINKA:

- Os povos indígenas se organizam com um projeto de vida bem complexo. Pará nós, o defeito quando acontece não está na pessoa, mas no nosso jeito de orientar. A responsabilidade é de todos. Na aldeia você é membro de uma grande família. Eu não posso ter o respeito só com meu pai, meu avô. Tenho que chamar a todos de pai, mãe, avô, irmão. Falo que tenho 50 pais, 50 mães, 200 irmãos. Essa é uma segurança que a gente tem. Não se chama ninguém pelo nome. Chama de pai, irmão, avô...

- O particular está no contexto social do grupo: é praticando que se mostra o que faz. Uma criança cresce aprendendo a fazer tudo. Isso é básico, para ele aprender a viver na sociedade. Quando dois jovens se casam, eles vão construir isso, para serem contados como parte da aldeia.

- Entre nós existe uma organização profunda, o nosso mundo funciona bem. Não tem burocracia. Sai tudo de dentro da pessoa, nada vem de fora.

- Quando separaram nossa floresta em Brasil e Peru, na passado, sentimos que estávamos morando na terra dos outros. Os não índios impuseram regras. Então, um outro tempo de nossa vida foi garantir nosso território. Foi difícil, a maioria de nós desconfiava: será que querem acabar com a gente? Mas começamos a nos sentir seguros com o movimento dos seringueiros e de outros grupos indígenas.

- Esses processos não mudaram nosso jeito de pensar. Mas fomos forçados a colocar em questão o diálogo com outros grupos. Estamos vivendo hoje um momento que nos deixa muito felizes.

- Nós entendemos o canto dos pássaros e outros sons da floresta, e ficamos tão íntimos dela que passamos a entender tudo. Quando um não índio chega a nossa aldeia, a partir do jeito como ele olha a gente, já entendemos como nos vê. Nem precisa falar. Às vezes as pessoas falam coisas bonitas mas não passam segurança. Elas precisam começar a "ver" de verdade.

- O problema dos Ashaninka é um problema do planeta. Queremos dialogar com o mundo inteiro. Não queremos ser do jeito de vocês, nem que vocês sejam como nós. Mas estamos no mesmo barco.

MOISÉS (Txeni) ASHANINKA:

-Tradição é uma palavra muito forte. É como uma árvore que está em pé, fincada na terra, mostrando sua beleza e dando frutos. A mesma coisa é a idade. Uma geração trabalha para as novas gerações.

- Muitos não índios fazem perguntas sem sentido para as quais não temos resposta. É como colocar um barco onde não tem rio. É preciso dar significação às perguntas. Eles costumam tratar a gente como pessoas que não sabem nada. Eu não vou perguntar algo assim a vocês. É preciso haver respeito entre os povos. Sem respeito não existe diálogo.

- Semente, árvore, folha, flor... nosso povo conhece isso e também o espírito das árvores. É dessa forma que sabemos respeitar a floresta. Para nosso povo todo mundo é doutor e todo mundo é mestre. Porque você sozinho não sabe de nada. Mas, juntos sabemos tudo.

- Esse diálogo (entre saberes) é uma coisa muito bonita. É uma coisa que, mais para frente, vai permitir aos não índios entenderem que no nosso mundo tem tudo que precisamos, como no mundo de vocês.

*Elson Martins, Almanacre, Página 20, Rio Branco, 28/10/2007


27/10/2007

O Artesanato Ashaninka e a Cooperativa Ayonpare da Comunidade Apiwtxa


por Alexandrina Piyãko*

Com uma população total de mais de 60.000 indivíduos, nós, Ashaninka, somos um dos principais povos indígenas da Bacia Amazônica.

foto apiwtxa/ayonpare

















Ocupamos um território que se estende dos Andes Centrais, no Peru, à Bacia do Alto Juruá, no Brasil. Devido ao contato com o mundo dos Wirakotxa (homem brancos), algumas famílias Ashaninka migraram para o leste no final do século XIX e se instalaram, progressivamente, na região do Alto Juruá, em terras que se tornaram brasileiras no início do século XX.

A definição das fronteiras dos Estados brasileiro e peruano separou de modo desigual os membros de nosso povo Ashaninka em dois países. A maioria da população vive em Território peruano. No Brasil, o povo Ashaninka conta com cerca de 900 pessoas que habitam cinco terras indígenas, todas situadas no Estado do Acre.

foto apiwtxa/ayonpare

















Nossa Terra Indígena Kampa do Rio Amônia se localiza na faixa de fronteira. No município de Marechal Thaumaturgo, ela faz limite com o Peru, com a Reserva Extrativista do Alto Juruá, com um assentamento do Incra e com o Parque Nacional da Serra do Divisor. Sendo a principal Terra Ashaninka no Brasil, nela se encontram reunidas cerca de 400 pessoas.

Permanentemente somos ameaçados pela exploração ilegal de madeireiros peruanos em nossa terra. Mas, mesmo com a presença ilegal das madeireiras peruanas em nosso território, não enfraquecemos, pois, sempre procuramos nos fortalecer, cada vez mais, na organização comunitária e na defesa sistemática do território e do meio ambiente. E, uma manifestação disso, é a produção do nosso artesanato.

foto apiwtxa/ayonpare













O artesanato Ashaninka é um artesanato milenar. Não é um simples artesanato como muitos outros que encontramos nas grandes cidades. O artesanato Ashaninka nos acompanha desde nossa história de origem, e cada um dos nossos desenhos tem seus significados e contos.

Nós, Ashaninka, temos nosso próprio comércio dentro da Aldeia que é o que chamamos de Ayonpare, troca de peças artesanais entre os Ashaninka ou com outros povos indígenas. Essa troca existe há muito tempo.

foto apiwtxa/ayonpare













Desde a criação da Cooperativa Ayonpare, nós, Ashaninka, passamos a vender nossos produtos na Aldeia também. Em 1993, criamos a Associação Ashaninka do Rio Amônia e, em 2003, a Ayonpare foi legaliza juridicamente, com o apoio do Governo do Estado, através do Sebrae.

Hoje, trabalhamos com duas lojas, uma na Aldeia e, outra, em Cruzeiro do Sul. A loja da Aldeia Apiwtxa foi construída em 2005, com apoio do Governo do Estado do Acre através de um convênio com a Associação Apiwtxa. Por ser dentro da Aldeia, há uma boa venda para visitantes brasileiros e não brasileiros. As pessoas do Município de Marechal Thaumaturgo também compram nossos produtos.

foto apiwtxa/ayonpare













Na Aldeia, você pode encontrar grande variedade de produtos criados pelas pessoas da Comunidade, como: tambor, flauta, pente, cocar, colares, malas, cestos, arco e flecha, cachimbo, urucum para pintura corporal, tecidos em algodão produzidos por nós mulheres como tipóia, bolsas, capuz, cushma (vestimenta tradicional Ashaninka, feita de algodão por nós mulheres da Aldeia), entre outros produtos.

Com a criação do Centro de Formação Yorenka-Ãtame, recentemente inaugurado por nós, Ashaninka do Rio Amônia, em frente ao Município de Marechal Thaumaturgo, houve a necessidade de criar uma loja e um escritório também em Cruzeiro do Sul. A loja fica em um Shopping Center, no centro da cidade.

foto apiwtxa/ayonpare













Em nossa loja de Cruzeiro do Sul, você pode encontrar bolsas, tipóias, capuz e cushmas (vestimenta masculina e feminina), cocar, malas, tambores, cachimbos, pulseiras, txoshiki (enfeite masculino em semente, feito por homens e mulheres da Aldeia), pulseira, colares, arco e flecha, estojo de urucum em bambu (para pinturas corporal), pentes, flautas em bambu, cestos, cadeiras em cipó, mesas de madeira entalhadas, cds e dvds produzidos pelos videastas Ashaninka. Esses são alguns de nossos artigos, vendidos aqui na loja, inaugurada em abril de 2007. Com a criação dessa loja, as vendas melhoraram bastante. Além das pessoas de fora, que visitam a cidade, muitas pessoas de Cruzeiro do Sul procuram nossos produtos e isso é muito bom.

A Cooperativa Ayonpare vem representando os interesses da Comunidade no que diz respeito à comercialização da produção de artesanato. Desde 1990, o artesanato é responsável pela manutenção do dia-a-dia da Aldeia Apiwtxa do Rio Amônia, onde vivemos da caça, da pesca e da produção alimentícia na própria Aldeia. Desde então, a produção e a comercialização externa de artesanato têm assegurado os trabalhos comunitários desenvolvidos pela Comunidade Apiwtxa, sendo a principal fonte de renda da nossa Comunidade.

foto apiwtxa/ayonpare

















Além de termos essas duas lojas, também trabalhamos com encomendas de outras lojas de outros Estados, como a Amoakonoya, de propriedade do Walter, e a Arte Indígena da Amazônia, de propriedade da Noriko e Junko, as duas em São Paulo, e o Museu do Folclore, no Rio de Janeiro. Paralelo a essas vendas, temos muitas encomendas pessoais, e ainda vendemos durante a participação em eventos nacionais e internacionais, como em 2005, quando estivemos na França e na Alemanha e nossos produtos foram muito bem aceitos.

Para quem quiser fazer encomendas, basta entrar em contato com a Cooperativa Ayonpare pelo endereço: shaatsy@yahoo.com.br

Para ver fotos dos nossos artesanatos, clique aqui.
Artesanato Ashaninka

*Alexandrina Piyãko, é diretora da Ayonpare Cooperativa Ashaninka

25/10/2007

Os Ashaninka, o Imaflora e a Smartwood vão à fronteira identificar a presença ilegal da madeireira peruana Forestal Venao no Território brasileiro

foto Ibama/AC

















Índios Ashaninka e organização internacional fiscalizam fronteira entre Brasil e Peru "Mais de 200 quilômetros de área entre os dois países serão percorridos para identificar a presença ilegal de madeireira peruana..." por Sandra Assunção, Rádio Aldeia – Cruzeiro do Sul, Hoje, 25 de outubro de 2007.
Leia a matéria aqui.
Ouça a matéria aqui.



16/10/2007

Mapa com coordenadas de desmatamentos













Amigos,

Localizamos no mapa algumas coordenadas dos desmatamentos dos peruanos em Território brasileiro, dentro da nossa Terra Indígena Kampa do Rio Amônia.

Observem que, dos pontos que levantamos em nossa última viagem, há um ponto com madeira marcada para corte dentro do Brasil.

E há, dentro do Peru, muito próximo da fronteira com o Brasil e do ponto onde as árvores estão marcadas para corte, o ponto da "picada" para a retirada de madeira.

Agradecemos aos amigos da Comissão Pró-Índio do Acre por ter nos ajudado a localizar as coordenadas no mapa.

Para ver o mapa ampliado, clique aqui.


Ministro da defesa visita obras do Pelotão de Fronteira em Marechal Thaumaturgo

foto AgNA
Por Sandra Assunção*

O ministro da defesa Nelson Jobim chegou a Cruzeiro do Sul nesta segunda-feira à uma hora da tarde. Vestido com trajes militares e acompanhado de comandantes militares da Amazônia e do governador do Amazonas, Eduardo Braga, o ministro Jobim foi recepcionado pelo vice-governador César Messias e pelo comandante do 61° BIS, Tenente Coronel Eduardo Janssem. Do aeroporto a comitiva seguiu para almoço no clube do BIS e depois foi de helicóptero para Marechal Taumaturgo, no alto Rio Juruá, onde está sendo construído um pelotão de fronteira provisório. A unidade definitiva será erguida em 2010. Por enquanto os homens do BIS ficam em uma balsa em regime de revezamento.

Com a construção do Pelotão de Fronteira definitivo, onde ficarão instalados soldados e oficiais, será solucionado um grande problema ambiental e diplomático. Atualmente madeireiros peruanos invadem a fronteira e retiram madeira nobre de forma ilegal [do Brasil] e vendem o produto no mercado internacional. Um dos objetivos do Pelotão de Fronteira é desarticular as quadrilhas que saqueiam a floresta brasileira.

À noite o ministro Jobim participou de um jantar com autoridades civis e militares e na manhã de terça-feira segue para Rio Branco onde visita as unidades do 4° BIS, e do 7° BEC. O ministro Jobim, que parte da viagem teve a companhia da ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, visita todas as unidades do exército na Amazônia.

*Sandra Assunção, 15-10-2007 - 18h05
Agência de Notícias do Acre



14/10/2007

As coordenadas dos desmatamentos

Amigos,

Saímos da nossa aldeia dia 3 e retornamos dia 6 de outubro de 2007, com uma equipe de 17 pessoas para novamente fazer a fiscalização de nosso território.

Nessa ida, encontramos vários caminhos de caçadas feitos por pessoas da Comunidade Sawawo (Peru) e uma picada de 2 metros de largura feitas pela empresa peruana Forestal Venao para explorar madeira ilegalmente.

Essa picada que fica no Rio Arara já tem aproximadamente um ano, mas encontramos caminhos mais recentes onde estão marcando árvores de mogno.

Nessa ida, eu peguei algumas coordenadas de GPS e pedi que fossem verificadas, para ter idéia de onde estão esses pontos na nossa terra.

Saímos da Comunidade Apiwtxa subindo o Rio Amônia e entramos na mata sobre a coordenada:

- capoeira do Samuel “S 09º 22.691, W 072º 58.637”
- caminho de caçada da Comunidade Sawawo “S 09º 23.900, W 072º 56.570”
- primeira travessia, primeiro igarapé “S 09º 24.255, W 072º 55.985”
- nosso acampamento de dormida “S 09º 24.859, W 072º 55.132”
- primeiro caminho onde eles marcaram a madeira para corte “S 09º 24.985, W 072º 54.305”
- picada feita para entrada das máquinas “S 09º 25.654, W 72º 53.496” [Peru]

Essas coordenadas estão sendo processadas, analisadas e colocadas em mapa. Mas nós sabemos que estão dentro ou muito próximas da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, Brasil, Território brasileiro, para quem quiser ver, para quem tiver boa vontade e quiser ver com os próprios olhos o que não dá para esconder, tamanho o estrago já feito.

Nós precisávamos fazer mais esta viagem, para ver novamente o que os peruanos estão fazendo na nossa terra, porque precisávamos responder ao relatório da auditoria da SmartWood Rainforest Alliance que, para se proteger por ter concedido o padrão de certificação FSC à empresa madeireira peruana Forestal Venao, tem noticiado (aqui) que sua auditoria não encontrou nada de irregular nos desmatamento ilegais e criminosos que a Forestal Venao pratica com o apoio e a certificação da SmartWood Rainforest Alliance em nossa terra e no Território brasileiro.

Mas nós, povo Ashaninka do rio Amônia, não vamos nos cansar de denunciar e lutar por nossos direitos, o direito do nosso povo de viver na floresta e o direito da floresta ser mantida de pé.

Desde o ano de 1999 a gente vem fazendo as denúncias, e desde que as Instituições brasileiras assumiram a fiscalização na fronteira, desmontaram vários acampamentos de madeireiros peruanos na nossa área, e registraram em relatórios as coordenadas em GPS dos acampamentos peruanos desmontados e as áreas de floresta desmatada. E estes dados estão à disposição no IBAMA, para quem quiser investigar.

Mas a SmartWood Rainforest Alliance saber disso de nada adianta, eles mantém a certificação e a Forestal Venao está rindo muito agora. Conseguiu convencer alguns índios peruanos, o Inrena e a própria SmartWood que derrubar a floresta e invadir o Território brasileiro é um grande negócio, que eles chamam de “manejo florestal sustentável”, mas não passa de uma grande fraude da Forestal Venao certificada pela SmartWood Rainforest Alliance que está acabando com a nossa floresta.

Isaac Piyãko, Líder ashaninka da aldeia Apiwtxa do rio Amônia.

08/10/2007

O paco-paco do Beré

por José Carlos dos Reis Meirelles*

Para quem não sabe, paco-paco é uma árvore que cresce na beira de todos os rios do Acre, também conhecido como algodoeiro. É madeira mole, levíssima e que tem muitas serventias. Cortado em pedaços pequenos, dá excelente bóia de malhadeira, cortado em toras, é madeira usada para fazer balsas quando não existe canoa para travessia de um rio ou igarapé de repiquete. As crianças, índias e brancas, fazem pequenas canoas e ubás de seu âmago mole e bom de trabalhar. Suas folhas servem pra cobrir a carga em viagens no verão, quando a chuva inesperada chega. Sabendo usar e fazer, sua casca dá boa corda.

E assim o paco-paco vai paco-pacando sua vidinha leve e tranqüila, com as raízes fincadas nos barrancos dos rios, satisfeito com suas utilidades. O Beré, mateiro da Frente Envira, sabedor de todas elas, recentemente descobriu outra, inédita.

Pois bom, Beré estava voltando para casa com o Chicão, de uma caçada num sábado, de canoa. Nestas horas o mateiro cansado de andar e carregar a caça nas costas, vem com aquele olhar perdido no horizonte. De um olho só. O outro vem conferindo o barranco. Um olho na banana e outro na irara! Por lá tem índio isolado, flechadas. Mas ninguém consegue ver através da vegetação da beira do barranco. São inúmeras espécies de plantas barranqueiras disputando a luz do sol, criando um muro verde na beira. O paco-paco do Beré, também está nesta disputa, jovem ainda, um palmo de roda, planejando crescer, florar e despejar suas flores no rio para encher o bucho das pirapitingas.

De repente um tiro! A água, bem do lado do Beré é espalhada pelo chumbo, que passou muito próximo de suas costas. O Chicão acelera o motor e chega logo em casa. Passado o susto, no outro dia, de manhã, o pessoal foi verificar o local do ocorrido. Ainda estavam lá alguns “índios isolados” que correram e deixaram uma flecha com as penas amarradas com linha de nylon 020 multicolor, que só tem pra vender no Peru, ou na Feira do Paraguai, em Brasília.

Foi aí que viram o paco-paco com a banda toda lascada por um tiro. O atirador deve ter acompanhado o movimento da canoa com a espingarda e na hora exata em que apertou o gatilho, o paco-paco do Beré estava ali, entre a linha de tiro e suas costas. Desviou a camaçada de chumbo o suficiente para que o tiro desse na água.

O Beré escapuliu, como se diz por aqui. Os madeireiros peruanos estão mandando “índios isolados” atirarem na gente. Não sei como o governo brasileiro pode negociar com o do Peru, para acabar com esta exploração irracional de mogno nas fronteiras dos dois países, protegendo seus parques, terras indígenas e “nóis que véve nas fronteiras”. Digo dos dois países porque os patrícios peruanos, vez por outra, invadem nosso território para roubar mogno.

O que sei, e principalmente o Beré sabe, é que até agora podemos contar mesmo é com a proteção do santo paco-paco.

*José Carlos dos Reis Meirelles, sertanista, é chefe da Frente de Proteção Etno-Ambiental do Rio Envira, na fronteira do Brasil com o Peru.
Direto do Blog do Altino

01/10/2007

A história do Yorenka Ãtame

por Benki Piyãko*

Através da Associação Apiwtxa viemos informar os parceiros e amigos da Rede a proposta criada por nós, líderes do povo Ashaninka, como vemos o mundo através de nossas experiências e, no mesmo instante, colocando nosso propósito de trabalho para complementar e difundir nossas experiências com outras regiões do planeta.

A grande degradação da biodiversidade responsável pelas mudança climática que vem ocorrendo na Terra nos causa preocupação.

Somos responsáveis pela minimização desses problemas que vem ocorrendo na Terra e nós indígenas estamos dando a nossa contribuição em meio a essa situação.

A longa história, sobre a preservação da natureza, contada pelos mais velhos sobre as invasões ocorridas em nossa terra, causava grande impacto pra nossa comunidade Ashaninka, da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia.

Nossa terra fica situada na faixa de fronteira Brasil/Peru, sendo a principal terra Ashaninka no Brasil, reunindo 500 pessoas residindo na Aldeia Apiwtxa, fazendo limite com: o Peru, com a Reserva Extrativista (RESEX) do Alto Juruá, um assentamento do INCRA e o Parque Nacional da Serra do Divisor (PNSD).

Essa história fez com que as lideranças representativas dessa comunidade: Benki, Moisés, Isaac, Francisco e outras lideranças mais velhas, entre homens e mulheres da comunidade, se articulassem a um modelo de manejo para a reconstrução da natureza que foi e continua sendo devastada em nossa região e do entorno, criando assim um modelo de sustentabilidade social e ambiental.

Apesar do longo contato com a sociedade ocidental, o nosso povo preservou até os dias de hoje seus conhecimentos tradicionais, contados pelos mais velhos. Esses conhecimentos apresentam uma cultura milenar, sábia e rica que é repassada de geração a geração. Ao longo dos últimos quinze anos, nosso povo se tornou um exemplo de sustentabilidade social e ambiental para a região amazônica. As ações desenvolvidas por nós também serviram de fonte de inspiração para o governo do estado do Acre que, desde 1998, se denomina de “Governo da Floresta” e fez do desenvolvimento sustentável seu modelo estratégico de trabalho com a população indígena e não-indígena do Estado do Acre.

O nosso território, assim como toda região, passou e continua passando por grandes invasões predatórias, ocasionadas por madeireiros peruanos e caçadores de animais silvestres, que vêm de diversos lugares do entorno.

Diante desse constante fato, o nosso povo se organizou internamente para defesa do nosso território, no sentido de fortalecer a identidade cultural e étnica do nosso povo, com objetivo de mostrar uma nova forma de equilíbrio sustentável em relação aos nossos recursos naturais, ampliando tais conhecimentos para outras etnias e servindo de modelo a nível nacional e internacional.

Desde 1989, nós, Asheninka, criamos o primeiro Sistema de Recuperação de nosso território, utilizando as práticas de manejo sustentável.

Em 1992, ano da demarcação de nossa terra, criamos um projeto de pesquisa onde analisamos a riqueza de nosso território com o objetivo de criar alternativas de sustentabilidade econômica e ambiental visando a autonomia do povo Ashaninka e da região.

No âmbito do Centro de Pesquisa Indígena, com a centralização de um pequeno espaço isolado, começamos efetivamente o reflorestamento de nossa região, na qual foram plantadas mais de 80 mil mudas com uma diversidade de 146 espécies de árvores frutíferas e madeiras de leis, onde se pode em um ano tirar mais de 50 toneladas de alimentos para a comunidade.

Dentro desse trabalho de Sistemas Agroflorestais foi consorciada uma diversidade de espécies tais como apicultura, manejo de peixes em rios e lagos, além do manejo da fauna e flora.

Nossa luta em defesa do nosso território trouxe hoje uma nova reflexão para ampliar o conhecimento desse equilíbrio sustentável, mobilizando seminários e encontros nacionais e internacionais com outros parentes indígenas para defender o nosso território de onde tiramos nosso alimento e toda nossa sustentabilidade.

A necessidade de difundir este conhecimento acumulado pela comunidade Apiwtxa para a população da região, que inclui uma Reserva Extrativista, um Parque Nacional e outras terras indígenas, levou à criação de um projeto idealizado por Benki Piyanko, a partir de sua experiência como Secretário do Meio Ambiente do Município de Marechal Taumaturgo.

Esse projeto foi elaborado pelas lideranças da comunidade e chamado Centro de Formação Yorenka Ãtame – Saber da Floresta.

Com o apoio financeiro de alguns parceiros a comunidade Apiwtxa adquiriu uma área de 86 hectares em frente à sede do município de Marechal Thaumaturgo, onde está montada a estrutura física do Centro de Formação.

O projeto “Centro de Formação Yorenka Ãtame (Saber da Floresta)” foi inaugurado em julho de 2007. Ele é a continuação, fortalecimento e ampliação da longa luta do nosso povo para a proteção do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável da região do Alto Juruá, uma das regiões mais ricas em biodiversidade do planeta.

Fruto da rica experiência do nosso povo com a sustentabilidade, o Yorenka Ãtame (Saber da Floresta) funciona como um centro de formação, educação, intercâmbio e difusão de práticas de manejo sustentável dos recursos naturais da região do Alto Juruá.

Estamos apresentando um projeto do espaço Yorenka Ãtame, como uma oportunidade para a população do rio Juruá poder ver os modelos de uso dos recursos naturais de forma mais prática e técnica.

Esse projeto também é para fortalecer os conhecimentos tradicionais, para que a população tenha uma nova visão sobre a floresta. Esta visão é saber como usar os recursos naturais sem agredir o meio ambiente e a natureza, de forma que esse saber possa ser reconhecido como ciência de conhecimentos práticos, recuperando terras, florestas e animais, cuidando da biodiversidade em geral.

Para isso, vamos disseminar novos conhecimentos na área da sustentabilidade e formar jovens e adultos para trabalhar uma nova forma de manejo da floresta, manejo dos recursos naturais.

Vamos fazer manejo de fauna, de quelônio para repovoação, manejo de rios e lagos com espécies de peixes que vivem na região, manejo de abelhas nativas. manejo de sementes e também recuperação da floresta com plantios de frutíferas, restaurando áreas degradadas, manejo de espécies de madeira, sobretudo protegendo as águas de nossos rios e igarapés e diversos outros trabalhos, assim como estudar as leis ambientais.

Com isso visamos o nosso futuro e o futuro de novas gerações.


O Centro Yorenka Ãtame também está aberto para pessoas de outras instituições para seminários, intercâmbios, oficinas com projetos de educação, cultura, meio ambiente.

*Benki Piyãko, Vice-Presidente da Associação Apiwtxa e Coordenador do Centro Yorenka Ãtame – Saber da Floresta