09/12/2007

A solução dos conflitos entre índios e não índios no rio Amônia exige urgente ação inovadora do Estado

por Eliza Mara Lozano Costa*

Sei que, numa situação de conflito, falar bem de um lado é sempre, e mesmo sem querer, falar mal de outro. Recentemente escrevi no “Blog do Altino” (leia aqui) um texto sobre os conflitos de moradores do rio Amônia, em Marechal Thaumaturgo, com o grupo Apolima-Arara liderado por Chiquinho Siqueira Arara. Na ocasião, movida pela reação a notícias que apresentavam moradores como “invasores”, pretendi apenas trazer mais informações sobre a região, acreditando poder ajudar na compreensão daqueles conflitos, que pedem urgente ação. Não foi minha intenção posicionar-me “contra a luta dos índios”, conforme comentado recentemente pelo Txai Terri neste espaço. Aliás, registro aqui que, apesar da crítica, me senti até lisonjeada por merecer um comentário do Terri, por quem tenho enorme admiração. Por isso, um debate com ele é mesmo uma honra.

Na verdade, Terri tem mesmo razão ao dizer que, no tal texto do Blog, eu teria assumido o ponto de vista dos moradores da Reserva. Como antropóloga, essa era mesmo a minha tentativa, mas que fique claro: quando falo em “moradores”, falo em índios e não índios, por isso não estou contra lado nenhum. Tentarei ser mais clara dessa vez.

Em 1994, passei alguns meses morando com famílias do rio Amônia, e venho acompanhando desde então a história no local, seja em visitas ou em reuniões eventuais. Por causa disso tenho um enorme carinho pelas famílias - índias e não índias - que tão generosamente me receberam em suas casas. E por esse sentimento, por minha responsabilidade enquanto antropóloga, e pelo respeito pela história recente local é que me senti obrigada a me opor, não aos indígenas ou à sua liderança, e sim a uma visão maniqueísta que me parece estar se constituindo quando se fala nos conflitos na região, dividindo todos em “índios” e “invasores”. Embora essa seja a maneira de expressão dos conflitos atuais, a dicotomia ignora a história local e simplifica a realidade, sem nada ajudar a resolver.

foto Papo de Índio












Seringueiros e agricultores discutindo o futuro da Reserva Extrativista do Alto Juruá em assembléia de 1994

Um pouco da história recente da região

A área que hoje é palco desses conflitos fica na região dos rios Amônia e Arara, afluentes do alto do rio Juruá, englobando parte da Reserva Extrativista do Alto Juruá e do Projeto de Assentamento Amônia. Também faz fronteira com Terra Indígena Ashaninka e a sede municipal de Marechal Thaumaturgo, em acelerado processo de urbanização. Vamos a alguns dados dessa história recente.

Em 1990, foi criada - por um movimento de índios e não índios - a Reserva Extrativista do Alto Juruá. Em 1991 é aprovado em assembléia um Plano de Uso que oficializava as regras para o uso dos recursos e permanência na área, agora sob administração (pelo menos oficial) do Ibama.

O rio Amônia, fronteira oeste da Reserva, já se torna um lugar sui generis: apesar de seus moradores poderem atravessar a pé de um lado para o outro durante quase todo o ano, de um lado do rio passam a existir certas regras para uso das florestas e dos rios, do outro, nada constava.

Em 1986, foi criada a Terra Indígena Kampa do Rio Amônea, dos Ashaninka, partindo da fronteira com o Peru nas margens do alto rio Amônia. Em 1992, inicia-se a saída de várias famílias dessa terra indígena, tanto de moradores índios e não índios. Em sua maioria, essas famílias preferiram permanecer residindo no próprio Amônia, adensando a ocupação que já existia rio abaixo.

No mesmo período é criado o município de Marechal Thaumaturgo, com a sede da Prefeitura instalada na foz do rio Amônia, do lado oposto ao da Reserva Extrativista do Alto Juruá. Rapidamente se inicia a urbanização da sede municipal, com uma política agressiva de construção e distribuição de casas e cargos públicos.

Obviamente, não havia recursos suficientes para a manutenção de todas essas famílias que acorreram para a sede municipal. É então que caçadores, pescadores e madeireiros acorrem em busca de alimentos e de madeira para a construção da cidade, adentrando, não sem muitas brigas, o território da reserva extrativista e da terra Ashaninka, dentre outros.

Em 1996, políticos locais pareciam pensar que os conflitos eram poucos, e acharam por bem criar um projeto de assentamento, justamente no território situado entre a terra Ashaninka, o Parque Nacional da Serra do Divisor e a Reserva Extrativista do Alto Juruá. E um tipo de assentamento estabelecido nos moldes mais tradicionais do Incra, aquele dos pequenos lotes que impedem qualquer economia extrativista, com ênfase na pequena criação de gado, sabidamente inadequados para a Amazônia e muito menos para o entorno de unidades de conservação e terras indígenas. Esse assentamento era, porém, importante para o projeto de “desenvolvimento” dos políticos da época, claramente posicionados contra os movimentos sociais locais, tanto indígenas como não-indígenas. Com isso, novo adensamento no rio Amônia, mais pressão sobre os recursos e, claro, novos conflitos.

O paradoxal aqui é que justamente nessa área, já tão complicada, é que surge hoje esse novo conflito, agora entre índios e não índios. Por quê? Arrisco uma resposta: justamente por causa da dualidade entre a preservação ambiental e a urbanização empurrada por interesses políticos. Políticas contraditórias acabaram produzindo um lugar relativamente acessível aos benefícios de saúde e educação (pela proximidade da sede municipal) e, ao mesmo tempo, relativamente preservado (pela localização entre terra indígena, parque e reserva).

E por que essa área ainda está relativamente preservada?

Mais um pouquinho de história. Até meados da década de 1980, é bom não esquecer, o destino de toda essa região estava determinado: assentamentos agrícolas, fazendas pecuárias e exploração madeireira.

A mudança nesse traçado, também é bom não esquecer, se deve à luta dos índios Ashaninka na defesa incondicional de sua área e do movimento dos seringueiros e agricultores do Alto Juruá – o que incluiu descendentes de migrantes nordestinos e de indígenas sobreviventes dos massacres de início do século passado, que conseguiram conquistar, em paralelo com os seringueiros de Xapuri e Brasiléia, pela primeira vez na história brasileira, o reconhecimento de seus direitos a um território e a um modo tradicional de vida.

Assim, nos últimos anos, muitos moradores da terra indígena, da reserva e alguns também do assentamento - índios e não índios - vêm tentando proteger essa região dos tantos invasores. Mas quem são mesmo esses “invasores”?

O termo “invasor”, localmente, tem vários sentidos. Às vezes é usado quando pessoas “de fora” (especialmente moradores da sede municipal) “invadem” a reserva ou a terra Ashaninka em busca de madeiras, carne de caça e peixe. Entretanto, é muito difícil invadir um lugar com tantos moradores. Na maioria das vezes, isso só é possível com algum apoio: ou de políticos locais, que antes chegavam até a forjar documentos “autorizando” ações predatórias, ou apoio dos próprios moradores, índios e não índios, sempre bem recompensados. Também são chamados de “invasores” aqueles moradores (índios e não índios) que agem de forma contrária ao Plano de Uso da Reserva e mesmo contra os diversos arranjos locais que, embora não escritos, definem localmente regras de moradia e uso de recursos.

A luta contra essas invasões nunca foi fácil. A estratégia Ashaninka foi unir suas moradias na fronteira de sua terra, onde era maior a pressão. Pelo lado da reserva, moradores, índios e não índios buscavam apoios na associação de seringueiros e no Ibama. Ambos chegaram mesmo a ter um papel importante, fortalecendo um grupo de fiscais e agentes ambientais. Apoios intermitentes e que aconteceram apenas por breves períodos.

Se hoje ainda há essa relativa preservação da área isso se deve, quase unicamente, a alguns moradores e os antigos fiscais e agentes (índios e não índios), que aceitaram a difícil tarefa de convencer, quase só com palavras, índios e não índios a usarem os recursos de forma mais controlada, ainda que às vezes mais trabalhosa. E também a convencê-los a não apoiar os invasores de fora, apesar dos bons pagamentos de diárias ou da generosa distribuição da caça e madeira ilegalmente obtida. Muitas e muitas vezes essas pessoas abandonavam suas atividades e famílias para tentar conversar com os infratores, por vezes até parentes e amigos, fazer reuniões, denúncias, correndo riscos de enfrentar discussões, brigas, violências.

Por isso, não foi sem orgulho que os moradores de toda a região, índios e não índios, ao final dos anos 90, comemoravam que, durante aquele período, as ações predatórias vinham diminuindo, as caças estavam mais próximas de suas casas, o rancho estava melhorando.

Qual não deve ter sido a revolta dessas mesmas pessoas ao saberem que deixaram de ser os responsáveis diretos pela preservação de um lugar para se tornarem, de uma hora para outra, os “invasores”. Ou, na melhor das hipóteses, “vítimas”, como expresso na ação civil do Ministério Público.

Nem invasores, nem vítimas

Como é possível perceber, se é difícil saber exatamente quem são os invasores, isso não interessa a ninguém, também não dá para dizer que são todos “vítimas”. A história dali também foi escrita por aquelas pessoas. A reserva extrativista é uma conquista desses todos, índios e não índios, aos quais estou chamando de moradores da região. O projeto de assentamento foi criado, e mesmo sabendo dos riscos, não tive notícias de nenhuma organização contrária a ele, nem tampouco contra a política de urbanização da sede municipal. Todos os seus moradores (incluindo-se aqueles que haviam saído da terra Ashaninka) reivindicaram e obtiveram seus créditos, fizeram suas casas de madeira serrada com teto de alumínio, plantaram suas capineiras para agradar aos técnicos do Incra, mesmo cansados de saber que a formação de pastos é inadequada para as margens dos rios. Da mesma maneira, ninguém acha ruim ter seus filhos perto de si, freqüentando o ensino médio ou o superior, ter um posto de saúde e uma pista de pouso que os leva rapidamente a Cruzeiro do Sul, quando necessário. Enfim, um mínimo de dignidade. Talvez um arremedo daquela sonhada florestania...

E nada disso invalida a luta e o reconhecimento da legalidade do movimento dos indígenas, iniciado por Chiquinho Siqueira Arara, liderança de luz própria, que corajosamente vem procurando fomentar e valorizar os costumes das diferentes famílias indígenas do local, procurando uni-las na luta por um território próprio e diferenciado. Os próprios moradores reconhecem as suas diferentes origens e, a meu ver, não estão questionando a legalidade dessa luta, mas com certeza não acham legítimo serem chamados de invasores, e, assim como os indígenas, só querem seus direitos.

Mas não só direitos à “moradia, alimentação” ou à “assistência”, como exige a ação pública para os assentados, que, como bem lembrou Terri, não se refere aos moradores da reserva.

Penso que, quando os antropólogos definiram os possíveis limites da terra indígena não estavam lidando com um traçado mítico ancestral, nem mesmo com o uso real da terra, mas, muito acertadamente, com o futuro daquela população.

E o futuro que aqueles moradores não índios, tanto na reserva quanto no assentamento, vem construindo? Não, eles não vivem em sua maioria em “situação de miserabilidade”, como afirmado na ação civil. Não estão apenas morando e sobrevivendo ali. Eles estão construindo seu futuro, educando seus filhos e, em alguns casos, numa região com fartura alimentar e abundância de recursos naturais preservados, por eles mesmos, com muitas dificuldades. Alguns ainda hoje tentando manter esses recursos para as próximas gerações, mesmo agora, sem apoio nenhum, nem de Ibama, nem de associação.

Um papo sério sobre o futuro

Lá pelos idos de 1985, seringueiros reunidos em Brasília já lutavam pela “participação no processo de discussão pública de todos os projetos governamentais nas florestas habitadas por índios e seringueiros” e queriam estar juntos na construção de “modelos de desenvolvimento que respeitam o modo de vida, as culturas e tradições dos povos da floresta, sem destruir a natureza e melhorando a sua qualidade de vida”. É o que consta no documento lido por Chico Mendes naquele famoso Encontro de Brasília. É o que os moradores da floresta foram cobrar do Estado, um Estado que acabou por respeitar suas lutas, oficializando as reservas extrativistas, que, apesar do descaso do mesmo Estado, ainda são áreas com alguma preservação no Acre.

Agora essas mesmas pessoas que enfrentaram de frente patrões, políticos e madeireiros na luta por seu modo de vida, que depois ainda enfrentaram seus próprios amigos e vizinhos por um sonho de uma Amazônia preservada, deverão agir como “vítimas” esperando uma solução do Estado - mas qual Estado?

Aquele que pagou uma ridícula indenização aos que saíram da terra Ashaninka? Aquele que esquece que os agricultores precisam viver, proibindo-os de construir e plantar até um dia que ninguém sabe? Ou o que há anos faz ouvidos moucos às tantas denúncias de invasão, desacreditando todo o respeito duramente conquistado pelos moradores que tiveram o sonho de uma região conservada para o futuro?

Penso que o que esperam é um Estado que não os trate como invasores e muito menos como vítimas. Creio que esperam um Estado que tenha a coragem de juntar todos na mesma mesa, que considere o princípio de direito ao contraditório das partes afetadas, todas as populações tradicionais. Um Estado que tenha a coragem para definir de forma efetivamente participativa, os limites adequados e que sejam no futuro uma base de convivência e não uma nova fonte de atritos permanente. Que discuta seriamente as indenizações e outras medidas compensatórias que poderão surgir nesse encontro, medidas que efetivamente promovam não só a moradia e a subsistência, mas um futuro que seja condizente com a história e o futuro que as pessoas vinham tentando conquistar, para suas próprias famílias e para toda a Amazônia.

Uma vez os seringueiros do Acre foram os principais responsáveis por escrever uma nova história na Amazônia, inventando as reservas extrativistas, pondo fim a anos de brigas e violências. Os conflitos no rio Amônia não são um caso isolado. Lutas envolvendo sobreposições de áreas vêm sendo cada vez mais comuns e é um desafio para todos nós. Mas quem sabe não será o Acre que, juntando índios e não índios, Estado e quem mais o seja, terá a coragem de escrever, mais uma vez, uma história capaz de respeitar de verdade a luta e os direitos de todos os povos da floresta? É desse lado que estou.

* Eliza Mara Lozano Costa, Antropóloga e pesquisadora na Resex Alto Juruá, orientanda de doutorado do professor Mauro Almeida, na Unicamp. Página 20, Papo de Índio, 9/12/2007

Um comentário:

Daniel disse...

Posição extremamente sensata!!!

A realidade de todos contra todos não leva a lugar algum!!!

Seu texto foi útil demais para um posicionamento meu em relação a mais uma qustão indígena!!!

Provavelmente seus argumentos estarão na redação que farei no concurso da FUNAI!!! rsrsrsrs...