A partir de um sonho, de uma visão de
futuro, é possível transformar tudo o que se quer. Assim nos ensinam as
histórias da família Piyãko Ashaninka.
A área em que vivem as comunidades
indígenas do Povo Ashaninka constitui um vasto território que compreende desde
a região do Alto Juruá e do rio Envira no Brasil, até a cordilheira andina no
Peru.
Os Ashaninka do rio Amônia (afluente do Juruá) somam mais de 800 indivíduos.
Grande parte do grupo situa-se hoje na Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, demarcada
em 1992 com 87.205 hectares. Dentro dessa TI, na aldeia
Apiwtxa, ou no lugar onde “todos juntos”
expressam o sentido sagrado do ser, vive a família Piyãko.
Contam por ali que certo dia, há
muito tempo atrás, uma grande liderança tradicional, política e espiritual, de
nome Samuel Piyãko, estabeleceu
morada às margens do Amônia para cumprir sua missão de escrever as primeiras
páginas da história de uma família, e plantar as sementes da luta um Povo que
mudaria para sempre o destino daquela região. Anos depois, seu filho Antônio
Piyãko, seguindo seu destino na saga, casou-se com uma mulher forte, filha de
seringueiros da região, de nome Francisca. Da união de seu Antônio com dona
Piti, como todo mundo a conhece, nasceram 07 guerreiros Ashaninka. A cada um
coube carregar um espírito diferente, dotado de uma força e um talento próprios,
e exercer um dom singular. E “todos
juntos” respondem hoje pela continuidade desse enredo de resistência
cultural, preservação e valorização da floresta como entidade suprema de força
e vida, e afirmação de um modo solidário e belo de convivência em comunidade e
em sociedade.
Os irmãos Francisco, Moisés, Isaac, Benki, Dora, Alexandrina, e Bebito,
sete filhos de dona Piti e seu Antônio, são hoje os protagonistas
da mobilização que vem marcando a trajetória das gentes, da floresta, e dos territórios
no Alto Juruá.
O impulso das ideias e atitudes dos
Piyãko levou a comunidade da Apiwtxa a promover a substituição de um conjunto
de atividades que vinham sendo desenvolvidas em sua Terra, por um modo de
produção sustentável, orientado pela conservação ambiental, em busca da
autonomia do grupo. Assim, práticas como a destinação de áreas de pasto para criação
de gado, e a extração indevida de recursos naturais, por exemplo, foram
erradicadas ali há bastante tempo. Hoje, o território indígena é objeto de uma
gestão eficiente e cuidadosa, centrada na conservação e uso sustentável dos recursos naturais,
e no respeito e valorização da floresta como provedora da vida, da alimentação,
e da saúde material e espiritual.
Foi na década de 1990 que os Ashaninka da Apiwtxa definiram sua
estratégia de gestão territorial e ambiental, expressa no Plano de Gestão Territorial
e Ambiental da Terra Indígena Kampa do Amônia. Realizaram o etnomapeamento da
área, reconhecendo os espaços e recursos de seu território e planejaram a forma
de seu uso. Com o apoio de parcerias estabelecidas no âmbito de diversos
projetos, hoje a comunidade desenvolve o manejo de quelônios, a criação de
peixes e a implementação de sistemas agroflorestais, protegendo esses recursos
e, ainda, promovendo saúde e segurança alimentar à comunidade.
Nesse processo, foram fundadas pela comunidade, a cooperativa Ayõpare
(“troca/negócios”, em Ashaninka), e a associação Apiwtxa (“todos juntos”, em
Ashaninka). Sua gestão é efetuada por um coletivo de líderes comunitários que dialogam
constantemente com toda população da Terra Indígena.
Os indígenas têm investido no aperfeiçoamento da proteção e gestão
territorial local, intensificando suas atividades de monitoramento, a fim de
evitar invasões de terceiros, e consequentes práticas de crimes dentro de suas
terras, como por exemplo, o desmatamento para extração e comercialização ilegal
de madeira. Estabeleceram parcerias visando a sofisticação de táticas e
equipamentos para cumprimento desse objetivo de proteção territorial.
Vêm, ainda, promovendo o reflorestamento e o plantio de frutíferas com
vistas à recuperação de áreas degradadas, formação de jovens, fortalecimento da
segurança alimentar e melhoria da qualidade de vida das comunidades, além da
articulação com parentes do Peru e realização de ações e campanhas contra o
desmatamento do território Ashaninka no país vizinho.
É importante destacar também, o Centro Yorenka Ãtame (“saberes da
floresta”, em Ashaninka). Criado em 2007 pelos Ashaninka da Apiwtxa, é um
espaço voltado ao compartilhamento de saberes, conhecimentos, e aprendizados,
entre indígenas e não-indígenas. Serve para realização de eventos de
articulação entre as comunidades da região, organização e consolidação de
alianças que visam o fortalecimento das populações locais, de atividades de promoção
do cuidado com os recursos da floresta, investimento no meio ambiente saudável,
valorização das culturas, e respeito aos direitos humanos e sociais.
Os Ashaninka da Apiwtxa são autores do primeiro projeto do Fundo Amazônia
aprovado diretamente em favor de uma associação indígena no Brasil, o Projeto Alto Juruá, iniciado em abril de 2015 pelo Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES. Com duração de três
anos, o projeto atua em três principais eixos: assessoramento, capacitação e
implantação de sistemas agroflorestais; apoio à gestão territorial e ambiental
às comunidades indígenas e tradicionais do Alto Juruá; e desenvolvimento
institucional das organizações comunitárias. Dentre suas atividades, estão a
realização de cursos de formação na área de agroecologia, gestão territorial e
ambiental e de projetos, construção de bases de vigilância e de estrutura para
a produção e comercialização de polpa de frutas.
O projeto conta com um diferencial relevante. As ações não foram pensadas
para beneficiar apenas as populações das Terras Indígenas. Elas alcançam também
as comunidades tradicionais da Reserva Extrativista do Alto
Juruá, território vizinho à Kampa do Rio Amônia. Isso revela a manifesta sabedoria
Ashaninka que, não só compreende que a conservação e o respeito à floresta
dependem da união das forças de todos os povos e comunidades da região, mas propicia
o exercício da solidariedade para com os vizinhos irmanados em direitos e
deveres em relação à Mãe Terra.
Tive a honra e a satisfação de, a
convite da família Piyãko, acompanhar parte do curso de agroecologia ocorrido no
final do ano passado, e de ministrar algumas aulas no curso para monitores ambientais
da Reserva Extrativista, em maio de 2016. As duas atividades se efetivaram no
âmbito do Projeto Alto Juruá. As histórias da Reserva e dos atores de suas
comunidades merecem ser contadas em capítulo à parte, tamanha a riqueza que carregam!
A partir dessa vivência, me pergunto de
que forma poderia eu expressar em palavras a ação que está em curso por lá. Talvez
seja difícil precisar num relato tudo que está se passando ali. Só sei das
lembranças, dos sentimentos. Sei da verdade que meu coração sente em tudo o que
meus olhos viram. E sei como interpreto as histórias que ouvi e vivi por lá. O
que há por lá é uma força transformadora. Uma reunião de espíritos, mentes,
saberes e fazeres cooperando para mudar o que não anda bem nesse mundo. Todos
juntos atuando para transformar a exclusão, o preconceito, a violência, e a
ignorância. Para transformar um projeto de sociedade que concentra recursos e
renda nas mãos de poucos e que promove uma brutal exploração econômica e
destruição da terra, em um modo saudável, respeitoso, fraterno, solidário e sustentável
de viver e conviver. Vi a concretização de um novo paradigma de atuação política,
que acolhe os elementos e conhecimentos tradicionais na construção e
implementação coletivas e interculturais de um projeto de desenvolvimento social,
ambiental, e cultural.
Numa noite, num terreiro da aldeia, enquanto
prateávamos sob uma claríssima e linda lua crescente, uma estrela me contou que
essa história, embora não tenha data para terminar, terá um final feliz. Eu
acredito! E desejo que estejamos todos
juntos nessa luta.
Por Maria Augusta Assirati
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