01/04/2010

Almamaque de Cultura e Transformação Ibero-Americana

“Eu fico lá com meus pais, e a gente vem trabalhando o desenvolvimento, o reflorestamento e repovoamento. Depois que conseguimos nosso território, que era muito devastado na época pelas madeireiras, começamos a fechar e trabalhar para que isso não acontecesse de novo.”

Por Thereza Dantas, no Almanaque de Cultura e Tranformação Ibero-Americana

São quase 15 anos de trabalho de repovoamento e reflorestamento a partir da Aldeia Apiwtxa, Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, no município de Marechal Thaumaturgo, Vale do Juruá, no Estado do Acre. Quem conta um pouco dessa história é Wewite Ashaninka, também conhecido por Bebito, o cameraman do povo Ashaninka.

A família de Wewite é uma das fundadoras da Apiwtxa, uma ONG que trabalha com questões ligadas à terra e ao reconhecimento do patrimônio cultural desse povo. Um detalhe curioso: o povo Ashaninka, oriundo do Peru, é numericamente mais populoso do outro lado da fronteira (cerca de 60 mil) e no Brasil não chegam a 1 mil. Mas os que estão em terras brasileiras estão se articulando para manter suas terras e as tradições da sua cultura por meio de parcerias com instituições públicas e particulares, brasileiras e estrangeiras. O irmão de Wewite, Isaac Pinhantã Ashaninka, é hoje Secretário do Meio Ambiente do Município de Marechal Thaumaturgo. “A minha família é quem está mais integrada nos assuntos da Apiwtxa. O meu trabalho é mais com a documentação de imagens da região”, explica Wewite. O “trabalho de documentação”, feito com equipamento profissional audiovisual, também faz parte da estratégia do povo Ashaninka para preservar suas tradições.

O cameraman Wewite Ashaninka é um dos realizadores indígenas que participam do trabalho da ONG Vídeo nas Aldeias e que, junto com seu irmão Isaac, realizou o documentário A gente luta mas come fruta, que recebeu em 2007 o prêmio Panamazônia ActionAid, da organização não-governamental internacional ActionAid. No documentário, cenas de como os Ashaninkas estão trabalhando para recuperar os recursos da terra, explorada de modo desordenado pelos brancos. Madeireiros peruanos são sempre a grande preocupação do povo Ashaninka para poder manter a floresta em seu território, já antes ali destruída, tal como continua a acontecer do outro lado da fronteira. O mesmo vale para os traficantes, cuja rota, a partir da Colômbia ou do Peru, atravessa seu território. Eles já ofereceram fortunas para que se estendesse nas aldeias a plantação e o refino da coca – cujas folhas os indígenas mastigam em situações que exigem esforço físico e ainda utilizam em seus rituais xamânicos, sendo, portanto, cultivada nas unidades domésticas da aldeia, mas sempre em quantidade ínfima. Sua recusa em transformar em economia de escala uma prática enraizada em seus costumes, mostra o quanto compreendem a necessidade de manter seu modo de vida para poder preservar as tradições de sua cultura.

Outro líder reconhecido da ONG Apiwtxa, Benki Piyãko, um dos responsáveis pelo Centro de Saberes da Floresta Yorenka Ãtame, viaja o mundo explicando o trabalho de se manter “a floresta viva, em pé”. O Centro Yorenka Ãtame, criado em 2006, foi idealizado por sete irmãos para realizar um sonho de seu avô, Samuel Piyanko, desde os tempos em que se discutiam as primeiras propostas de se manterem reservas extrativistas para assegurar a exploração sustentável dos seringais: era preciso “promover a união de índios e brancos para perpetuar a principal fonte de abastecimento de suas famílias e vizinhos – a floresta viva”. No Centro são oferecidas oficinas de capacitação de índios e não-índios, jovens, homens e mulheres, que recebem bolsas para aprender e trabalhar com os “saberes da floresta”, acumulados pelo povo Ashaninka em séculos de sua história. O Centro foi construído em uma área de pasto próxima à cidade de Marechal Thaumaturgo, que está sendo totalmente reflorestada. Índios Ashaninkas do Peru, em sua maioria jovens, são presença constante nessas oficinas de capacitação, que incluem desde conhecimentos sobre apicultura até o registro da memória das comunidades por meio das TIC’s – Tecnologias da Informação e da Comunicação. Dada a presença dos sofisticados equipamentos de gravação e projeção de vídeos, proporcionados pelo MinC, ao incorporar em 2008 o Ponto de Cultura Interação: Culturas Indígenas e Cultura Digital da ONG Apiwtxa, o Centro vem se tornando cada vez mais um lugar de lazer para a população da cidade.

E aí Wewite é peça fundamental na manutenção das tradições do povo Ashaninka. O apelido cameraman veio em função das belas imagens captadas por sua filmadora. É numa oficina de edição de imagens, oferecida pela ONG Vídeo nas Aldeias, que converso com ele sobre a cultura Ashaninka. É por Wewite que descubro que sua mãe é mulher branca, cabocla filha de seringueiro que nunca mais voltou para o mundo dos homens brancos depois de casar com seu pai, porque este é o costume Ashaninka, mas educou seus filhos para fazer a ponte entre a aldeia e os seringueiros. Descubro, também, que ele é casado com uma indígena de outro povo, mas que seu filho será Ashaninka porque, na tradição de seu povo, as esposas vão para a terra do marido e passam a fazer parte do grupo, incorporando seus costumes e sua cultura. É com ele que vejo as casas de madeira erguidas a um metro de altura do chão e crianças aprendendo a falar a língua de seus antepassados. “Além de realizador, também sou professor, membro da OPIAC: a Organização dos Professores Indígenas do Acre”, ele nos conta.

São estas redes, virtuais e físicas, que aproximam várias iniciativas indígenas na manutenção da floresta e tradições culturais de povos distintos. Além da OPIAC, que tem como objetivo promover, defender, desenvolver e divulgar a educação escolar indígena de forma específica e diferenciada, a Rede dos Povos da Floresta investe na infra-estrutura de comunicação e informação, inclusão digital e intercâmbio entre os diversos povos tradicionais da região amazônica. Criada em 2003, como uma revitalização da Aliança dos Povos da Floresta – mobilização feita por índios e seringueiros liderada por Chico Mendes e Ailton Krenak em fins da década de 80 –, ela retoma a agenda que resultou na criação das reservas extrativistas e na correção das políticas do Banco Mundial para o financiamento de grandes projetos de impacto socioambiental, nas regiões de florestas tropicais em todo o mundo.

O realizador indígena Wewite conta que a Cooperativa Ayonpare, que vende via internet adornos e roupas pelo blog da Apiwtxa, mobiliários e peças de decoração criados pelos Ashaninkas, foi durante anos o único meio de sustento da comunidade. “Pode parecer estranho, mas o que nos sustentou durante alguns anos foi a venda on-line de peças que fabricamos na nossa aldeia”. Não é nenhuma surpresa e nem estranho, quando se sabe que o povo Ashaninka, orgulhoso de sua cultura, tem como forte característica a capacidade de conciliar sabiamente costumes e valores tradicionais com idéias e práticas do mundo dos brancos, na defesa de suas tradições.

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