26/07/2007

Invasões madeireiras e diplomacia

por Marcelo Piedrafita Iglesias*

Conforme noticiado na imprensa de Rio Branco, no último dia 18 de julho, equipes do Ibama, Exército, Polícia Federal e Pelotão Florestal da Polícia Militar do Acre deram início a mais uma operação de fiscalização na fronteira internacional Brasil-Peru, desta vez nos altos rios Amônia e Juruá, visando coibir as atividades de retirada de madeira feitas por peruanos na Terra Indígena Kampa do Rio Amônia e, mais recentemente, na Reserva Extrativista do Alto Juruá, ambas no Estado do Acre.

Desde então, nenhuma outra notícia foi divulgada nos jornais acreanos sobre os resultados da operação. À procura de notícias, me surpreendi ao ver a matéria de capa do La República, jornal de Lima, no Peru, do dia 20, com direito a ampla foto: "Brasileiros seqüestram três peruanos". No dia seguinte, outra matéria no mesmo jornal: "Denunciam hostilização do exército brasileiro na fronteira". Ambas reproduzem denúncias da liderança Ashaninka da Comunidad Nativa Nueva Shahuaya, feitas em Pucallpa, em entrevista coletiva, em que estava acompanhado de um engenheiro da empresa madeireira Forestal Venao SRL.

Segundo a liderança Ashaninka, no dia 20, um "corpo militarizado" do governo brasileiro teria invadido aquela comunidade, situada na margem direita do alto Amônia, em território peruano, queimado um acampamento madeireiro construído com a Venao e "seqüestrado" dois Ashaninka e um funcionário da empresa, que, presos, teriam sido levados à sede de Marechal Thaumaturgo. As matérias ressaltam que a denúncia já fora encaminhada ao Instituto Nacional de Recursos Naturales (Inrena), à Marinha de Guerra, à Polícia Nacional e à Presidência Regional do Departamento do Ucayali, que a Chancelaria peruana iniciaria investigações junto à contraparte brasileira e que fontes do Ministério da Defesa do Peru acreditavam se tratar de ações do governo brasileiro no combate à atividade madeireira ilegal. Nova notícia no jornal La República, no dia 23 (leia), reproduzindo informações do "gerente geral" da Forestal Venao, dá conta que os peruanos (agora quatro, dois Ashaninka e dois empregados da empresa) já haviam sido liberados, após submetidos a maus tratos. Integrantes do Exército e da Polícia Nacional peruanos, diz o jornal, foram deslocados até Nueva Shahuaya para investigar a "suposta invasão territorial" promovida por militares brasileiros.

Ainda que com base nessas parcas informações iniciais, tenho convicção de que a nova operação do Ibama, Exército e Polícia Federal primará pelo estrito respeito às suas atribuições legais, à soberania do país vizinho e aos direitos das comunidades indígenas que vivem na fronteira internacional. Assim tem acontecido via de regra desde 2004, quando constatadas invasões do território brasileiro. Dados do Ibama, de abril de 2006, contabilizavam a apreensão de 2.565 pranchas e 955 toras de madeira, a destruição de 11 acampamentos e a prisão de 73 peões dos madeireiros (a grande maioria peruanos, logo repatriados).

O foco desta mais recente operação de fiscalização são as invasões que continuam a ocorrer na Terra Indígena Kampa do Rio Amônia e, mais recentemente, alcançaram a Reserva Extrativista do Alto Juruá. Essas atividades ilegais já haviam sido contatadas pelo Ibama em final do ano passado e tornaram a ser denunciadas em começo deste mês de julho, após novo sobrevôo realizado por técnicos do órgão (ver aqui).

Agora, flagrada em território brasileiro, a Forestal Venao opta por uma campanha de desinformação na imprensa peruana e junto às autoridades de governo, na tentativa de ocultar o que há vários anos é de amplo conhecimento: trabalha madeira ilegalmente em vários pontos da fronteira Acre-Ucayali com grande contingente de trabalhadores e maquinário pesado; construiu uma estrada ilegal desde a localidade Nueva Itália, no rio Ucayali, até a fronteira, com ramificações até a margem direita do Alto Juruá, onde seus prepostos extraem madeiras de comunidades nativas, sem qualquer plano de manejo, e inclusive na Reserva Territorial Murunahua, destinada a povos em isolamento voluntário; e esquenta madeira retirada nessa ampla região para inseri-la no mercado formal e inclusive exportá-la para vários países.

Apoiadas pela própria Forestal Venao, a liderança de Nueva Shahuaya vem a público defender a empresa madeireira com a qual trabalham nos últimos anos. Assim acontecera ainda 2001, quando lideranças Ashaninka da comunidade Sawawo Hito 40 estiveram no Congresso Nacional para denunciar supostas hostilizações do Exército brasileiro. Em meados de 2006, durante o processo de certificação da Forestal Venao, lideranças Ashaninka, para questionar copiosas informações sobre as atividades ilegais da empresa, mobilizaram, nas sedes de órgãos de governo e na imprensa de Lima, ampla campanha de difamação contra representantes da Defensoria del Pueblo de Pucallpa, que então faziam criteriosa investigação.

Assim é a Forestal Venao, empresa que instrumentaliza lideranças indígenas de acordo com seus próprios interesses, tem estreitos contatos políticos nos âmbitos regional e nacional e livre acesso à imprensa de Pucallpa e Lima. E desde abril de 2007, por incrível que pareça, atua legitimada por questionável certificação, sob o padrão Forest Stewardship Council (FSC), concedida pelo Programa SmartWood, da Rainforest Alliance, que preferiu fazer vista grossa aos vários ilícitos cometidos pela Venao, dos quais tivera conhecimento com anterioridade, com base em informações fundamentadas fornecidas por diversos especialistas. A empresa atua como "regente florestal" nas comunidades Sawawo Hito 40 e Nueva Shahuaya, que têm planos de manejo madeireiros aprovados pelo Inrena. E com base nessa certificação, a Venao pretende expandir e legalizar suas atividades em outras comunidades indígenas nos rios Juruá e Breu.

Em notícia divulgada hoje na imprensa de Rio Branco (leia), o chefe do escritório do IBAMA em Cruzeiro do Sul, Márcio Lima, afirmou que a operação constatou que a Forestal Venao avançou mais de um quilômetro em território brasileiro, nas proximidades da Vila Foz do Breu, localizada na Reserva Extrativista do Alto Juruá, provocando uma devastação que pode chegar a mais de seis mil hectares de floresta. A operação levantou a suspeita de que os madeireiros tenham alterado a localização dos marcos da fronteira internacional, cujo traçado, nesse trecho, cabe lembrar, foi aviventado e remarcado, no biênio 2003-2004, pela Comissão Mista de Inspeção de Marcos na Fronteira Brasil-Peru, formada por membros dos Ministérios das Relações Exteriores de ambos países. Conforme também informou o chefe do Ibama em Cruzeiro do Sul, o órgão teria conseguido a assinatura de um documento, por representantes do governo peruano, reconhecendo a invasão (o que deve ter resultado na liberação dos peruanos presos). Um novo sobrevôo na região fronteiriça está previsto para a semana que vem por uma equipe conjunta dos governos brasileiro e peruano, a partir do qual espera-se ações conjuntas venham a ser implementadas.

Visando tirar o foco das invasões promovidas em território brasileiro, constatadas mais uma vez nesta ação de fiscalização, a Florestal Venao preferiu tentar criar constrangimentos ao governo brasileiro e gerar um incidente diplomático com o governo peruano.

Ao exigir negociações e entendimentos binacionais, este novo cenário pode ajudar a esclarecer fatos e permitir avanços. Espera-se que, de mão de informações colhidas ao longo das operações realizadas na fronteira Acre-Ucayali nos últimos anos, e especialmente esta última na região nos altos rios Amônia e Juruá, o governo federal possa convencer o governo peruano a efetivamente fiscalizar as atividades madeireiras em curso na faixa fronteiriça e, assim, interromper, definitivamente, as invasões promovidas pela Forestal Venao e outras empresas em terras indígenas e unidades de conservação do lado brasileiro da fronteira internacional.

É desejável, ainda, que o governo do Estado do Acre também reforce essa posição junto aos governos do Peru e do Departamento do Ucayali. A definitiva paralisação das invasões causadas pelas madeireiras peruanas na fronteira deve constar como condição ao prosseguimento e bom desenrolar das negociações que vêm acontecendo em torno da assim chamada "integração regional". Repito, estas não podem ficar restritas à discussão monocórdica sobre as possibilidades abertas com a pavimentação da Rodovia Transoceânica. As invasões madeireiras, a proteção dos povos indígenas "isolados", a política de favorecimento pelo governo peruano da prospecção e exploração de petróleo e gás ao longo da fronteira, bem como ações comuns para a garantia das terras indígenas e unidades de conservação ali situadas e dos direitos humanos das populações humanas que nelas habitam, devem ser urgentemente incorporados como temas de crucial importância na agenda da "integração".

Péssimo momento para a Forestal Venao, que, espera-se, terá suas atividades ilegais expostas e debatidas em fóruns diplomáticos binacionais. Mal momento também para o Programa SmartWood, que terá de explicar por que, em abril de 2007, certificou uma empresa que continua cometendo amplo conjunto de ilegalidades. A realização de uma auditoria local para avaliar se a Venao está cumprindo com as obrigações assumidas quando da certificação está prevista para acontecer no mês de agosto vindouro. É de se esperar que o SmartWood seja mais criteriosa desta vez em sua avaliação, sob risco de comprometer sua credibilidade no mercado da certificação e a própria confiabilidade internacional do padrão FSC.

*Marcelo Piedrafita Iglesias, antropólogo
Direto do Amazonia.org.br

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